segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Conto de Natal


Um luar de prata banhava o caminho sinuoso de sombras que se recortavam como agulhas e corações deformados, agitados e perturbadores na vereda de terra batida.

Transmitiam movimento aos contornos delimitados por fragas e muros silenciosamente expectantes na noite.

Um recorte figurativo, alongado e neutro, deslizava ao acaso em passos pesados que arranhando a gravilha e ferindo o silêncio, despertaram o voo surdo de uma coruja, que como folha embalada pelo vento e descrevendo descendentes espirais, acabou pousada, incerta e apagada, na estrangulada curva do caminho.

Pedreiro solitário da terra, trabalhando nas fraldas da serra, palmilhava normalmente aquele percurso que atalhava o tempo até casa.

Aí, nada de novo o esperava.

Apenas a vontade de se sentar, junto à lareira, que acendia e ateava o fogo da lembrança da mulher que perdera, de incompreensível doença, que explicações doutoradas nunca o fizeram entender.

A aldeia onde habitava tinha deixado de o ser.

As casas, moribundas, sucumbiam na carência de presença humana.

Perdida no tempo, despejava no espaço ruínas de xisto e terras de silvas e estevas, que noutras épocas tinham sido fartas em cultivo e vida de sonoras gargalhadas já esbatidas no nevoeiro das passadas vindimas, desfolhadas, bailaricos e festas ao santo padroeiro.

O piado sibilado e lamentoso da coruja soou como carpideira em dia de funeral.

Mas José não ouviu apenas aquele som que soprava, qual gélido vento, cristais de neve: um outro lamento, chorava como um balido, entrecortado e soluçante, sumido na solidão impenetrável que a prenha lua tentava suavizar.

Retirando do bolso uma pequena lanterna, apontou o amarelado foco para as sombras mais fechadas da vegetação onde a claridade lunar teimosamente não penetrava.

Conduzindo os passos, de ouvido atento à mais pequena sonoridade, resvalou em pedras, enredou-se em urze, tropeçou em raízes, feriu-se em tojo correndo o mais que podia ao encontro do débil sussurro.

A lanterna soltava círculos trémulos e incertos esquadrinhando negrumes de cerradas vegetações fechadas como asas de corvo em torno da pálida lâmpada.

O gemido foi mais forte e a lanterna subitamente suspendeu o seu bailado e apontou para uma pequena forma que se agitava no meio de fetos envolta num pequeno cobertor.

Apressando mais o passo, José descobriu uma criança quase recém-nascida, que num alegre suspiro lhe estendia os pequeninos braços.

Agarrou-a, apertando-a bem de encontro a si, lançando-se ribanceira acima a caminho de casa.

- Que ser humano insensível e mau poderia ter tido a coragem de deixar exposta ao frio, aos animais selvagens e à fome, assim, uma criança! – Ia pensando, sem saber muito bem o que poderia fazer ou como cuidar dela. – Teria sido alguma mãe solteira com vergonha ou medo de retaliações da família? – Mas não se lembrava naquela terra esquecida e quase desabitada de qualquer jovem moça!... Seria de alguém de outra terra distante que a deixara ali?...

Perdido em conjecturas sem resposta, depressa chegou à pequena construção térrea, de granito e lousa que lhe servia de habitação.

A porta estava sempre aberta, já que qualquer um seria sempre bem-vindo na solidão estrangulada que lhe asfixiava a existência.

Entrou, depositando com todo o cuidado a criança num sofá descolorido e coçado em frente à lareira.

Foi acendê-la pensando em aquecer um pouco de leite para dar ao miúdo. De certeza estaria com fome!

Biberão não tinha, serviria uma colher?

Misturando jornais velhos, pinhas e madeira de eucalipto e oliveira, riscou acocorado um fósforo.

Inesperadamente todo o aposento se inundou de luz! Parecia-lhe um fogo de artifício que irrompendo de todos os cantos da casa soltava raios que explodiam de luminosidade cegando o olhar e incendiando os sentidos.

Voltou-se, fósforo na mão, lentamente a apagar-se e a queimar-lhe os dedos…

…Embalando ternamente o menino, sentada no sofá, fixando-o meigamente, descobriu envolta numa névoa celestial, como anjo rodeado de miríades de estrelas, a mulher!...

Aproximou-se, lento de espanto.

Enlaçando-a fortemente como portas que se fecham indestrutíveis no mesmo batente, perderam-se na saudade de um amor imortal.

Uma claridade irreal circundou-os.

Após aquela véspera de Natal, depois de muitas buscas, nos penhascos da perdida aldeia, nunca mais souberam do José…

Fernando Magalhães

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